sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Desafio Literário 2012: Infiel

Sinopse: Em 'Infiel', sua biografia precoce, Ayaan Hirsi Ali narra a impressionante trajetória de sua vida, desde a infância tradicional muçulmana na Somália até o despertar intelectual na Holanda e a existência cercada de guarda-costas no Ocidente.

Livro: Infiel
Autora: Ayaan Hirsi Ali
Tradução: Luiz Antônio de Araújo
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 504

Até pouco menos de um mês eu nunca havia ouvido falar de Infiel. Talvez porque não costume ler biografias (hábito que preciso mudar urgentemente), mas a verdade é que eu vinha perdendo um livro de qualidade ímpar. 

Decidi pela leitura de Infiel bem por acaso. O tema  de novembro para o Desafio Literário 2012 era autor africano e me pegou em um momento meio complicado (mais conhecido como falta de planejamento), então decidi baixar o livro que fosse ler. Vasculhei em uma lista de indicações e fui para o google em busca de ajuda. Infiel foi o primeiro que consegui baixar em português e a qualidade do texto era muito boa, com tradução original e tudo. 

E foi isso. Não escolhi Infiel, o livro é que me escolheu. E que leitura maravilhosa foi esta! A autobiografia de Ayaan é fortíssima, mas muito envolvente. A escrita da mulher é eficaz, pontual, sem exageros e muito menos excessos. E é de um senso crítico sem tamanho. Impossível ler e não se forçar a pensar. Alias, devo me corrigir, o leitor não é forçado a pensar, a reflexão vem naturalmente, porque não tem como tomar contato com as coisas que Ayaan nos apresenta e não pararmos pelo menos alguns instantes para reflexão.

Infiel é dividido em duas partes: a primeira conta a história de Ayaan ainda na África, desde a sua infância (e até mesmo um pouco antes dela, já que comenta inclusive sobre a história de sua mãe e de seu pai) até o início da vida adulta. A segunda parte me pareceu um pouco menor (eu li no kindle, então não tenho uma noção exata do número de páginas usado) e conta sobre o período que Ayaan passou na Holanda, desde a sua fuga de um casamento organizado por seu pai com um completo desconhecido, passando pelo asilo recebido no país europeu e o seu engajamento na política holandesa, especialmente na luta pelos direitos das mulheres.

Uma coisa ficou bem clara: Ayaan atualmente se considera ateia, mas enquanto vivia na África, e mesmo em seus primeiros anos na Holanda, Ayaan era completamente muçulmana. Mas mesmo sendo totalmente fiel à sua religião, ela jamais se conformou com a situação na qual vivia. A grande diferença é que somente depois que escapou dos grilhões do islã representados pela família, pelo clã e pelo próprio país onde vivia, é que teve a liberdade para pensar e analisar de onde vinha todo o inconformismo que sentia e o que fazer com ele.

A história de vida de Ayaan enquanto na África, é brutal, recheada de espancamentos, opressão, medo e conflitos civis. Duas ocasiões no livro me chocaram bastante. Uma delas foi a descrição da clitorectomia, uma prática horrenda, onde é cortado o clitóris da mulher - ainda criança - e os lábios pubianos, sendo costurado em seguida de forma a criar uma grande cicatriz, restando apenas um pequenino orifício por onde passa a urina. Ayaan passou pelo procedimento aos 05 anos de idade (e a irmão aos 04), sem que seus pais tivessem conhecimento (o pai era um prisioneiro político e a mãe estava viajando, tudo foi orquestrado pela avó materna). 

Algo que me chamou a atenção é que ela afirma que a clitorectomia não é advinda do islã como muitos pensam. O islã apenas abraçou esta parte da cultura dos clãs porque lhe era favorável, afinal, que melhor forma de garantir que a mulher de fato chegou virgem ao casamento?

A outra ocasião que me levou às lágrimas foi quando Ayaan e um parente partem para a fronteira (na época ela residia no Quênia) para resgatar a família deste parente, que havia ficado para trás durante a fuga da Somália, onde havia eclodido uma guerra civil (ou melhor dizendo, uma caça vergonhosa ao clã do qual Ayaan fazia parte). Como Ayaan foi criada no Quênia, ela sabia falar o inglês e outros idiomas, o que facilitaria na hora de subornar os guardas da fronteira. Mas os horrores que ela viu entre os refugiados, a fome, a miséria, a aceitação da morte como sendo algo tolerável e esperado foi extremamente chocante. A realidade desses povos é tão diferente da nossa que é difícil conseguir visualizar o que eles enfrentam, mas o livro é tão cru que não tem como fantasiar a situação ou pintá-la com expectativas coloridas.

O que acho mais interessante é que Ayaan se esmerou para nos fazer compreender a sua vida dentro do islã de forma bem objetiva e sem preconceitos ostensivos. Enquanto conta a sua história na África, a autora não nos deixa ver a sua visão atual do que ela vivia. O leitor é apresentado à pura vida muçulmana dos fieis. Ayaan viveu em Mogadíscio, na Somália, em Meca na Arábia Saudita e no Quênia (algumas outras cidades também, mas não recordo agora), sempre envolvida com o clã ao qual fazia parte e com a vida do islã. Os pais eram muçulmanos fieis, embora tivessem uma visão bastante apaixonada da religião, em especial o pai de Ayaan, que acreditava na democracia e na paz entre os homens, então sua criação foi bem tradicional. 

A verdade é que a forma como expõe ao leitor as suas experiências é até apaixonada as vezes, mostrando o que sentia à época. Ao lermos sobre esse período da vida da autora, conhecemos o quanto se importava com a religião e como se esmerava em fazer o que Alá e o profeta determinavam. E é justamente por isso que é tão válida a leitura de Infiel, pois nos faz entender o que se passa não apenas no seio da religião, mas no mais profundo da mente dos fieis.

Já a vida de Ayaan na Holanda sofre uma mudança brusca, mas que se encaixa perfeitamente no seu caráter inquisidor e crítico. A garota não se acomodava diante das situações. Não ficava parada nos abrigos destinado aos asilados como se nada mais houvesse por sua vida, muito pelo contrário. Ayaan batalhou para aprender o idioma, para estudar e ingressar na faculdade. Tentou (e conseguiu) se tornar parte daquele povo, pois percebeu que não tinha a obrigação de ser excluída apenas por pertencer a um clã ou por ser muçulmana.

Aos poucos foi percebendo que grande parte das mazelas que as mulheres dos clãs vinham sofrendo advinham do islã e começou a batalhar contra a cultura religiosa islâmica dentro da Holanda e, é claro, atraiu o ódio de muitos.

Inclusive, Ayaan escreveu um filme (um curta) muito esclarecedor e polêmico sobre o tratamento que a mulher recebe do islã.  O filme foi dirigido por Theo van Gogh, que acabou assassinado pouco tempo depois por um muçulmano e daí para frente a vida de Ayaan se tornou uma constante luta pela própria sobrevivência.


O livro toca em alguns pontos nevrálgicos, e Ayaan com certeza polemiza ao dizer que o islã não é uma religião pacífica, especialmente após toda a retalhação pós 11 de setembro.

Selecionei algumas partes que achei bem fortes entre as muitas que ela fala. Dá para entender porque a população islâmica entrou em guerra contra Ayaan:

"Houve períodos em que eu, assim como muitos outros maometanos, achava demasiado complicado lidar com a questão da guerra aos infiéis. A maioria dos muçulmanos não era versada em teologia e raramente lia o Alcorão; este era recitado em árabe, língua que a maioria dos fieis não falava. Em consequência, quase todos pensavam que o islã era pacífico. 
Foi dessa gente sincera e boa que surgiu a falácia segundo a qual o islã era pacato e tolerante. Mas eu já não podia deixar de ver o totalitarismo, o arcabouço puramente moral que constituía a minha religião. Ela regulava cada detalhe da vida e sujeitava o livre-arbítrio. O verdadeiro islamismo, como um rígido sistema de fé e estrutura moral, levada à crueldade". (falando sobre o ataque às Torres Gêmeas)

"Quando se diz que os valores islâmicos são a compaixão, a tolerância e a liberdade, olho para a realidade, para as culturas e os governos reais, e simplesmente vejo que não é assim. No Ocidente as pessoas engolem tais mentiras porque aprenderam a não ser excessivamente críticas ao examinar as religiões ou culturas das minorias, por medo de ser acusadas de racismo. E ficam fascinadas porque não tenho medo de fazê-lo".

Não dá para negar que Ayaan mexeu em um vespeiro (e o porquê foi ameaçada de morte e quase perdeu a cidadania holandesa). Mas é sempre válido ouvir as opiniões de quem viveu os dois lados e o livro serve para nos fazer pensar, o que, acredito, seja o que Ayaan realmente deseja ao levar ao mundo a sua história.

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